História da Iconografia Russa
“O ícone desempenhou um papel essencial na vida litúrgica, teológica e intelectual da Rússia, comparável ao da música. Até o século XIV a Ortodoxia da velha Russ (...) privilegiou, desenvolveu, amplificou uma liturgia que, além de alimento religioso e místico também foi ponto de partida para a reflexão sobre a beleza espiritual e estética” (J. Marcadé em 500 Anos de Arte Russa, p. 84)
1. O Batismo da Rússia
O apóstolo Santo André é considerado o primeiro pregador do cristianismo na Rússia que só foi realmente convertida séculos mais tarde. Na era do Imperador de Bizâncio, Basílio I, em torno de 864, houve uma primeira fundação cristã na Rússia. Essa, entretanto, foi exterminada por Oleg, que assumiu o poder em Kiev em 878. Apesar disso, a Rússia continuou a sofrer influência de Bizâncio, e certamente existiu uma Igreja em Kiev em 945.
A princesa Olga da Rússia foi batizada em 975 na Catedral Santa Sofia, em Constantinopla, e começou a construir igrejas em Kiev, Pskov e Vitebsk. Segundo a lenda, um raio da Santíssima Trindade teria descido dos céus e indicado o local onde a igreja de Pskov foi construída. A de Kiev foi consagrada a Santa Sofia, sabedoria divina. Desde então, a devoção à Mãe de Deus se difundiu pela terra russa.
Após a morte de Olga, a reação pagã de seu filho impediu qualquer desenvolvimento do cristianismo e todas as construções de igrejas foram suspensas, mas diversos ícones foram conservados. Conta-se que o príncipe Vladimir, neto de Olga, quando ainda pagão e meditando sobre sua possível conversão, ficou muito impactado por um ícone do juízo final, e a imagem ajudou-o em sua decisão. Recebido o batismo, o príncipe Vladimir declarou sua necessidade de venerar os ícones.
Segundo uma antiga lenda, em 987 o Príncipe Vladimir de Kiev enviou delegações às distintas regiões do mundo, tendo em vista examinar as religiões professadas, a fim de decidir qual era a mais apropriada para seu reino. Quando os delegados regressaram, recomendaram a Vladimir a fé professada pelos gregos, já que, assistindo a um ofício religioso na Catedral de Santa Sofia em Constantinopla, “nós não sabíamos se estávamos no céu ou na terra”. Depois do batismo do príncipe Vladimir, muitos de seus súditos também se batizaram nas águas do Rio Dnieper, no ano de 988.
Vladimir reinou entre 980-1015 e se casou com Ana, irmã do Imperador Bizantino. A Ortodoxia tornou-se a religião do Estado da Rússia e assim permaneceu até 1917. Vladimir pôs-se a cristianizar seu reino com determinação: padres, relíquias, vasos sagrados e ícones foram importados; batismos em massa eram feitos nos rios; Igrejas foram construídas e dízimos eclesiásticos foram instituídos.
O príncipe Vladimir dava grande importância à construção de igrejas e trouxe mestres gregos para ensinar a iconografia. Um aluno desses mestres gregos tornou-se o primeiro grande iconógrafo russo, o beato Alímpij, do monastério de Kievo-Pecerskij.
Relata-se que Alimpij possuía uma profunda experiência e falava da participação angélica no processo de criação dos ícones. Ele dizia que “o ícone surge de uma visão igual à visão angélica. Quando a possibilidade desta visão se obscurece ou cessa por completo, já não nasce um ícone, mas um quadro; não mais uma imagem sagrada, mas uma profana.” O último ícone do venerável Alimpij “brilhava mais que o sol” e quando seu superior lhe indagou “como e por quem havia pintado esse ícone” ele lhe respondeu que “o anjo o havia pintado”.
Grande Panaghia de Jaroslav
Atribui-se a Alimpij o ícone da Virgem Orante chamada de Grande Panaghia de Jaroslav, também conhecida como a Mãe de Deus de Blachernitissa. O ícone mostra a Virgem na tipologia orante, com os braços levantados. Em seu peito, dentro de um medalhão, o menino Jesus. A Virgem se identifica com a imagem da Igreja: solene, monumental, como a coluna e fundamento da verdade. O rosto reflete sabedoria e tranqüilidade profundas.
Anunciação de Ustyug
Outro ícone desta época é a anunciação de Ustyug. A tábua mede 229x144 cm e o arcanjo Gabriel fala com a Virgem, em cujo vestido está representado o menino. Toda a composição passa solenidade, profundidade e introspecção.
No final do século X até a metade do século XI, o Estado Russo, com capital em Kiev, tinha um território enorme, indo de Novgorod ao norte, a nordeste Jaroslav e ao noroeste Polotsk, no território da atual Bielorússia. Essa situação perdurou até 1054, quando após a morte do príncipe Jaroslav, o Sábio (filho de Vladimir), o reino foi dividido entre seus três filhos mais velhos. O filho mais velho Svyatopolk tentou tomar os territórios dos irmãos mais novos, Boris e Gleb. Obedecendo literalmente aos mandamentos dos Evangelhos, eles não ofereceram resistência e foram mortos pelos emissários de Svyatopolk. Apesar de não serem mártires pela fé, mas vítimas de uma disputa política, os dois irmãos foram canonizados, sendo os primeiros santos mártires russos.
Não obstante a grande dimensão do território, a iconografia russa nos séculos XI-XII conservou sua unidade, graças à importação de ícones bizantinos que se tornaram modelos para os artistas locais. Outro fator foi o papel unificador de Kiev, cuja cultura continuava a orientar as terras russas.
Pouco antes de 1132 vieram de Constantinopla dois ícones da Virgem, como presente do imperador de Bizâncio ao povo recém convertido ao Cristianismo. Um deles recebeu o nome de “Virgem de Vladimir” e foi colocado na igreja de Vysgorod, perto de Kiev. Em 1155 o príncipe Andrei Bogoljubskyj o transferiu para a Catedral da Dormição de Vladimir, centro de seu principado, onde ficou até o final de 1395, quando foi solenemente transferido para Moscou.
Durante o translado para Vladimir, o príncipe Bogoljubskyj teve uma visão de Nossa Senhora, ordenando-o a deixar o ícone em Vladimir, e que construísse uma igreja e um monastério no local da aparição. O príncipe construiu nesse local um convento chamado de “Bogoljubovo”, que quer dizer “amado por Deus”, uma vez que a Mãe de Deus “havia amado este local”. Essa revelação é a origem do ícone da Virgem Bogoljubskaya.
Virgem de Vladimir
Mãe de Deus Bogoljubskaya
Os ícones mais antigos ainda conservados, não são provenientes das primeiras igrejas construídas no sul, mas da Catedral de Santa Sofia em Novgorod, construída entre 1045-50. São dois ícones grandes, que provavelmente ficavam entre as colunas da iconostase. Em 1561, por ordem de Ivan, o Terrível, foram transferidos para Moscou. Um deles, representando o Cristo no trono, ficou na Catedral da Dormição, no Kremlim. O outro, representando os apóstolos Pedro e Paulo foi restituído a Novgorod em 1572. A representação de Paulo à direita, posição usualmente ocupada por Pedro, ressalta o papel particular de Paulo na difusão da doutrina cristã. Toda a encarnação do ícone passou por um processo de restauração no século XVI.
O ícone de São Jorge provavelmente também é de Novgorod. São Jorge é representado como um guerreiro, com grandes olhos abertos. Segundo a tipologia do final da época paleocristã e seguida pela iconografia bizantina, os grandes olhos abertos simbolizavam a coragem e impavidez do cristão e a visão da luz não criada, contemplada através dos olhos interiores, do olhar da alma.
São Jorge
São Paulo e São Pedro
Foi na Rússia que começou a tradição das iconostases nas igrejas, pois em Bizâncio os ícones eram principalmente para orações nas casas particulares ou nas celas dos monges. As primeiras iconostases eram bem mais baixas e representavam uma espécie separação do altar. Sobre as balaustradas havia pequenas colunas onde eram colocados os ícones relativos às festas. As dimensões eram muito grandes, bem maiores do que os de Bizâncio, o que faz alguns estudiosos suporem que esses ícones pretendiam substituir a técnica do mosaico.
2. Séculos XII e XIII: A Iconografia de Novgorod e Pskov
A partir da segunda metade do século XI os príncipes que governavam os centros autônomos desde a divisão do estado, começaram a financiar artistas e arquitetos, pois queriam adornar os seus próprios reinos com igrejas e ícones.
O rosto de Jesus na iconografia russa nos séculos XI - XII era austero, de barba arredondada e não separada, cabelos abundantes que caiam em cachos espessos, sobrancelhas mais planas e grandes olhos.
São Paulo e São Pedro
A iconografia do Pantocrator teve grande difusão na igreja ortodoxa russa, pois associava a figura do Cristo criador e regente com conceitos escatológicos e apocalípticos, suscitando uma disposição de animo séria e profunda. A imagem do mandylion de Edessa também era conhecida na Rússia, trazida por peregrinos que haviam ido prostrar-se diante dela em Constantinopla, para onde havia sido trasladada em 944. O ícone da Santo Keramion é desta época.
Entre os séculos XII – XIII havia um forte intercâmbio entre Novgorod e Bizâncio. Com a invasão tártaro-mongólica na Rússia, o processo de cristianização foi tragicamente interrompido. Novgorod não foi destruída, como Kiev e Vladimir, mas sofreu as conseqüências da invasão: decadência do nível cultural, ruptura de relações com Bizâncio e decadência econômica geral.
Esse isolamento forçado de Novgorod contribuiu para o desenvolvimento de um estilo particular, distante da tradição bizantina. Enquanto os ícones bizantinos expressavam o ideal de uma espiritualidade sutilmente elaborada, os ícones novgorodianos exprimiam a própria experiência interior, não coincidindo com a arte paleóloga. A composição é mais estática, o desenho é mais simples, o colorido também, mas sem perder uma profundidade espiritual. Os fundos vermelhos são muito usados. Um ícone característico da época é o de São João Clímaco junto com São Jorge e o mártir Blas.
São Paulo e São Pedro
A Virgem orante de Novgorod, um de seus maiores tesouros, foi responsável pelo sucesso da batalha contra o exército de Suzdal, 1170. O arcebispo Ioann, por inspiração, levou o ícone da virgem para as muralhas da cidade, quando uma flecha acertou o ícone. Então o povo viu lágrimas escorrerem do rosto da Virgem, e acolhendo o milagre como um presságio divino, encheram-se de coragem e derrotaram o inimigo. A partir deste fato começou a se desenvolver uma escola iconográfica com características mais próprias, assimilando algumas características nacionais
Novgorodianos contra o exército de Suzdal
Assim como Novgorod, a cidade de Pskov também ficou isolada durante o período da invasão tártara e desenvolveu um estilo algo parecido com o de Novgorod. Em Pskov os ícones se tornaram muito coloridos, usando muito o vermelho vivo, verde escuro, amarelo e marrom. Os contrastes cromáticos e uma linguagem alegre, quase folclórica, numa serena simplicidade, pode ser observada no ícone do profeta Elias com cenas de sua vida. A figura central do profeta está imersa em pensamentos, a composição é equilibrada, as colinas simétricas e os tons marrons tendem a contribuir com a atmosfera de meditação.
Profeta Elias
Virgem de Belozersk
Na iconografia russa do século XIII, diferentemente da arte bizantina que nesse período experimentava um renascimento das tradições helênicas, o motivo dominante era um “bizantinismo”, que determinava uma austeridade, lembrando o período comneno bizantino.
No ícone da Virgem de Belozersk a tipologia do vulto, a expressão aflita, as linhas delicadas lembram a Virgem de Vladimir, que é do período comneno. Entretanto, a simplicidade do desenho, as feições do Cristo como um jovem e não um menino, os grandes olhos da Virgem, a vivacidade das cores, comunicam ao ícone uma monumentalidade e beleza muito particulares.
3. Séculos XIV e XV: Teófanes, Rublev e Dionísio.
No final do século XIV e início do XV, a Rússia experimentava um período de grande impulso espiritual, que se refletia nas artes. A doutrina de São Gregório Palamas, que havia dado vida aos antigos ensinamentos do esicasmo e vencido os seus opositores na metade do século, se reflete em obras pictóricas cheias de luminosidade, imbuídas da “oração do coração”. Essa oração consiste na repetição incessante da frase “Senhor Jesus Cristo, filho de Deus, tem piedade de mim pecador”, seguindo o ritmo da respiração e fazia parte das práticas monásticas russas.
Em 1390 chega a Moscou Teófanes, o Grego. Conta-se que ele tinha o gênio de artista, o talento de teólogo e uma experiência de oração que o punha em contato com as próprias imagens que pintava, tão intensa sua vida espiritual. Os estudiosos de arte associam a Teófanes e seus discípulos um grupo de ícones entre os quais está a imagem milagrosa da Virgem de Don. Nesse ícone predominam as cores marrons, dando grande destaque ao azul celeste, como se por trás da coberta material do mundo terreno o pintor divisasse o esplendor da divindade.
Virgem de Don
Andrei Rublev foi contemporâneo e aluno de Teófanes, o Grego. Considerado o maior iconógrafo russo que já existiu, ele se formou numa atmosfera de renascimento espiritual da Rússia. A primeira referência segura sobre Rublev é em 1405, ano em que trabalhou com Teófanes na pintura da catedral da Anunciação do Kremlim. Em torno de 1415, Rublev e seu amigo Daniil Ciornij pintaram na Catedral da Trindade, na Laura de São Sérgio. Para essa catedral Rublev pintou seu ícone mais famoso, a Santíssima Trindade.
Em 1918, em Zvenigorod, foram encontrados três ícones de uma fila de oração: o Cristo Redentor, São Paulo e São Miguel Arcanjo. O Cristo é a imagem central; São Paulo inclina-se um pouco para esquerda e o arcanjo para a direita. A perfeição artística desses ícones é tão elevada que se atribuiu a autoria a Rublev, pois nenhum outro iconógrafo contemporâneo a ele alcançou tal perfeição artística. Esses ícones são conhecidos como a “fila da iconostase de Svenigorod”. Tanto Rublev quanto seu amigo Daniil morreram em 1430.
Virgem de Don
O Cristo
São Paulo de Rublev
Arcanjo Miguel
Em torno da metade do século XV há uma mudança na iconografia de Moscou. As figuras tornam-se mais tênues, quase incorpóreas, com a estrutura mais estilizada. Após a queda de Constantinopla, em 1453, a iconografia russa torna-se a guardiã da iconografia bizantina, conservando principalmente seu espírito.
O artista mais representativo desta época é Dionísio, cujas figuras alongadas representam o mundo ideal. Suas obras não indicam a tragédia, não contém elementos dramáticos. Por exemplo, a Crucificação, com cores luminosas e grande harmonia e beleza de desenho, nos leva antes ao triunfo da vida sobre a morte.
Dionísio usa um colorido muito suave, com muito branco, e predominância de cores como turquesa, rosa, verde pistache e ouro. Há uma aspiração de elevar-se das coisas terrenas, uma beleza contida. Seu desenho é ponderado e consciente, mas falta aquela espontaneidade e leveza dos ícones de Rublev ou de Teófanes o Grego.
Os ícones de cenas da vida de Jesus, a partir de Dionísio, adquirem o caráter próprio de um relato atento e cheio de detalhes, como podemos observar no ícone da Última Ceia.
Última Ceia (Dionísio)
Crucificação (Dionísio)
Entretanto, já nesse período se verifica o início da ruptura que ocorrerá com maior força na pintura sacra do século XVI: a contemplação orante cede espaço à admiração estética. A consciência mística e simbólica no uso de cores e linhas é pouco a pouco substituída pelo simbolismo decorativo.
4. Século XVI
O século XVI foi uma época de mudanças na pintura sacra russa. Passou-se a dar grande importância ao significado e valor das antigas tradições russas, e a demanda por ícones cresceu rapidamente. Havia ícones nas casas, lugares de oração, igrejas, monastérios, comércios, e até mesmo nas ruas, sobre os portões de entrada dos pátios e sobre cada porta. Assim, o ícone saiu dos templos e monastérios para difundir-se entre o povo, tornando-se uma característica da piedade e devoção russa. Ao mesmo tempo, tornou-se um elemento de catequese para o povo.
Um elemento que contribuiu para esse desenvolvimento da pintura sacra foi a organização dos trabalhadores artesanais do czar e do metropolita no Kremlin de Moscou, onde se reuniram as melhores forças artísticas. O aumento de números dos ícones foi tão grande que as autoridades eclesiásticas começaram a se preocupar, pois isso poderia facilmente levar a uma decadência do nível espiritual e artístico dos ícones.
No Concílio de 1551, conhecido com “dos cem capítulos”, se proibiu de pintar ícones a todo aquele que o fizesse “sem escola, por iniciativa própria, sem modelos, comercializando esses ícones por preços baratos” Era necessário aprender “de bons mestres, e apenas quem tiver sido dotado por Deus poderia pintar sua imagem e semelhança; e não quem não tenha dons artísticos, para não vilipendiar o nome de Deus com suas obras.”
Nos anos 1520 e 30, a pintura ainda se inspirava em Dionísio, mas as cores já haviam perdido a leveza harmoniosa, tornando-se mais pesadas e decorativas. Há uma volta aos temas biográficos, como uma resposta do povo que queria entender sua própria história eclesiástica. As figuras com os quadros da vida do santo são dinâmicas, enquanto que as figuras centrais se apresentam como que paradas no tempo, no eterno, como intercessores celestiais e protetores do povo. Há também a aparição de ícones de caráter didático-moral, como a “Escada Celeste”.
Escada Celeste
Em 1547, início do reinado de Ivan IV, ocorreu um grande incêndio em Moscou, que destruiu inúmeras igrejas e tudo que nelas havia. O jovem czar então ordenou que se trouxessem para a capital, ícones de várias cidades, como Novgorod, Smolensk, Zvenigorod e outras.
Também foram solicitados iconógrafos de Novgorod e Pskov para Moscou. Os mestres iconógrafos foram dirigidos por um conselheiro próximo ao czar, um padre chamado Silvestr. Esse que mandou pintar ícones seguindo um programa determinado: “A Santa Trindade Vivificadora nas ações”, “Creio em Deus Todo Poderoso”, “Louvemos ao Senhor dos Céus”, “Sofia Sabedoria Divina” e o ícone mariano “É Justo em Verdade”. A temática religiosa era tão complexa que requeria soluções de composição bastante complicadas. Também foram pintados ícones como “O Juízo Universal”, “Venham, povos, venerar ao Deus Trino”, etc.
Esses ícones suscitaram protestos do diácono Ivan Viskovatij, que entrevia neles uma abolição das antigas tradições eclesiásticas e não aceitava novas interpretações, mas apenas a cópia dos antigos modelos.. Viskovatij foi derrotado no Concílio de 1554 que, entretanto, reconheceu que algumas inovações iconográficas não eram compatíveis com a tradição, “os iconógrafos em certos casos não se saíram bem ao pintar, não seguiram os exemplos gregos, mas se guiaram por suas próprias irracionalidades e, portanto, mandamos que todo o ícone fosse refeito.”
A consciência religiosa encontrava-se num dilema: Podia-se desenvolver o pensamento iconográfico ou devia-se apenas copiar os exemplos antigos? Até que ponto as inovações seriam admitidas? Eram perguntas sem respostas claras.
O fato é que a tendência teológica nos temas iconográficos com composições elaboradas, fizeram com que os ícones passassem do mundo da contemplação para o mundo da ilustração, requerendo um esforço intelectual para decifrá-los.
O século XVI também está marcado pela manifestação de ícones milagrosos da Virgem. Um dos maiores foi o redescobrimento em 1579 do ícone de Nossa Senhora de Kazan, que desde então se tornou um dos ícones mais venerados na Rússia. Em 1594, momento em que Moscou estava sendo invadida, uma cópia do ícone foi levada ao campo de batalha e os inimigos derrotados, graças à intercessão da Santíssima Mãe de Deus. A lembrança desse acontecimento é festejada em 22 de outubro, como uma segunda festa em honra à Virgem de Kazan.
Em agosto de 2004 o Papa João Paulo II devolveu uma réplica do século 17 ou 18 do ícone da Virgem de Kazan, para o patriarcado de Moscou. O ícone havia sumido em 1918, com a revolução bolchevista, e em 1993 foi redescoberto e doado ao Papa, que o manteve em seus aposentos particulares.
Virgem de Kazan
5. Século XVII
Morto Ivan, o terrível, subiu ao trono o czar Fiodor, homem de grande piedade pessoal, que estabelece o patriarcado de Moscou em 1589. Havia uma grande crise na vida social e do estado, e nas artes, uma busca por antigas tradições. As escolas mais importantes são a de Godunov, nos anos 80-90, de pintores próximos à corte de Boris Godunov. È desta época a Virgem de Tolga repintada a partir de um modelo do século 13, mas agora com cenas dos milagres do ícone e do monastério de Jaroslav à volta.
Virgem de Tolga
Virgem Kikiotissa
Nesse século, a Rússia começa a olhar com interesse para a arte do Ocidente, na qual vê os sinais de um progresso maior. Por outro lado, os artistas ocidentais começam a olhar para a Rússia como um país em desenvolvimento, onde há oportunidades de trabalho e fortuna.
Por último, a escola do Palácio de Armas da corte imperial em Moscou, sob a direção de Simon Ushakov, que retoma os temas mais venerados da antiga Rússia e do Oriente cristão, como a Virgem Eleus-Kiksk ou Kikiotissa ou ainda parafraseando a célebre Trindade de Rublev.
Nesse ícone podemos observar bem as tendências desta escola: os vultos são arredondados, há um jogo de claro-escuro acentuado, os edifícios são copiados de estampas ocidentais. Entretanto, não é a arte realista ocidental, pois a composição é a tradicional e a luminosidade não deriva de uma fonte de luz real. São quase retratos, mas que ainda recordam os ícones. Este é um estilo que muitos iconógrafos russos ainda seguem atualmente.
Trindade de Ushakov
6. Século XVIII: Pedro o Grande e a Ocidentalização da Arte Russa
A decisão de ocidentalizar a arte russa veio de Pedro, o Grande, entusiasta da civilização ocidental. Ele mandava artistas russos estudarem na Europa e trouxe artistas europeus para a Rússia, para a construção de sua nova capital, São Petersburgo. A iconografia absorve muitos elementos do mundo latino, como a arquitetura clássica, com colunas trabalhadas e pórticos, e paisagens elaboradas passam a substituir os fundos simbólicos em ouro ou outra cor.
Um exemplo interessante são três composições, que aparecem como parte das festas, com a Trindade, a Adoração dos Magos e o Batismo: embora conservando a iconografia tradicional, são evidentes os elementos naturalísticos e narrativos da arte ocidental.
A arte sacra passou a ocupar um lugar secundário, pois os profissionais preferiam dedicar-se a gêneros que lhes dessem maior liberdade de criação e maior fusão com a cultura da Europa ocidental. Com o declínio do interesse pela pintura religiosa, diminui o uso da têmpera a ovo tradicional e passam a usar as tintas a base de óleo.
Como conseqüência, difunde-se também o uso de coberturas metálicas, ou risas, que testemunham a tendência ao decorativismo, do barroco ocidental ao invés da linguagem simbólica da iconografia. Por outro lado, a devoção às imagens sacras como lugar da Presença Divina nunca perdeu espaço na piedade russa.
Trindade, Adoração e Batismo
Referências
Ivanov, V.. El Gran Libro de los Iconos Rusos Ed. Paulinas,
Popova, Olga, et al. Ícone. Mondadori, Milano, 2003.
Marcadé, J. “Ícone e Vanguarda na Rússia, as duas maiores faces da arte universal” em “500 Anos de Arte Russa”, Museu Estatal russo e BrasilConnects, 2002