História da Iconografia Bizantina
“A veneração dos ícones na Igreja é como uma chama acesa, cuja luz jamais se apaga. Ela não foi acesa pela mão do homem, por isso sua luz nunca se extinguiu...” (G. Krug, em Os Ícones, p.33).
1. Das Origens ao Século VIII
Os primeiros anos do Cristianismo foram marcados por perseguições não só a Jesus, mas também a todos aqueles que aceitaram sua condição de profeta e acreditaram nos seus princípios. Esta perseguição marcou a primeira fase da arte paleocristã, chamada de fase catacumbária, que recebe este nome devido às catacumbas, cemitérios subterrâneos em Roma, onde os primeiros cristãos secretamente celebravam seus cultos.
As imagens mais antigas que chegaram até nós encontram-se nas Catacumbas e em outros lugares de culto do século III e IV. Ainda hoje podemos visitar as catacumbas de Santa Priscila e Santa Domitila, nos arredores de Roma.arte passa a ser a expressão do significado íntimo, exteriormente invisível das coisas.
Nesses locais, a pintura é simbólica, e Jesus Cristo poderia estar simbolizado por um círculo ou por um peixe, pois a palavra peixe, em grego ichtus, (ΙΧΘΥΣ) forma as iniciais da frase: “Jesus Cristo de Deus Filho Salvador”. Outra forma de simbolizá-lo é o desenho do pastor com ovelhas “Jesus Cristo é o Bom Pastor” e também, o cordeiro “Jesus Cristo é o Cordeiro de Deus”. Passagens da Bíblia também eram simbolizadas, como a Arca de Noé e Daniel na cova dos leões.
O Bom Pastor
A iconografia paleocristã dos séculos III e IV está centrada no Cristo, seja de forma visível ou simbólica. Ainda não existe uma iconografia mariana propriamente dita antes do Concílio de Éfeso, ou uma iconografia dos santos antes do século V.
A existência de tantas imagens nesse período inicial do Cristianismo é uma prova da superação pela comunidade cristã das proibições do Velho Testamento. Agora a Divindade invisível havia se tornado visível pela encarnação do Filho. Conforme João 1:18 “Ninguém jamais viu a Deus: o Filho Unigênito, que está no seio do Pai, este o deu a conhecer.” Ou, em João 1:14: “O Verbo se fez carne e habitou entre nós; e nós vimos a sua glória, glória que ele tem junto ao Pai como Filho Único, cheio de graça e de verdade”.
São João Damasceno, em sua “Defesa das Imagens Sagradas”, expressa esse ponto claramente: “Nos tempos antigos, Deus, incorpóreo e sem forma, não podia ser representado sob nenhum aspecto; mas agora que Deus foi visto e viveu em comunhão de vida com os homens, represento o que de Deus foi visto”.
Os primeiros cristãos tiveram que lutar contra a idolatria da religião então dominante, a helênica. Para os adeptos dessa religião pagã, os deuses eram representados por estátuas, identificadas pelos cristãos como “ídolos”. Essa aversão aos ídolos levou a uma abolição silenciosa das estátuas na arte cristã oriental, embora nenhum texto canônico ou patrístico proíba diretamente as esculturas. No Ocidente, essa aversão às estátuas foi apenas passageira. Quando o perigo da idolatria já havia cessado, a arte da escultura foi retomada.
Os cristãos foram perseguidos por três séculos até que em 313 d.C. o imperador Constantino legaliza o cristianismo, dando início à 2ª fase da arte paleocristã: a fase basilical. Tanto os gregos como os romanos, adotavam um modelo de edifício denominado “Basílica” (origem do nome: Basileu = Juiz), lugar civil destinado ao comércio e assuntos judiciais. Eram edifícios com grandes dimensões: um plano retangular de 4 a 5 mil metros quadrados com três naves separadas por colunas e uma única porta na fachada principal. Com o fim da perseguição aos cristãos, os romanos cederam algumas basílicas para eles pudessem usar como local para as suas celebrações.
Entre 324 e 330, Constantino, o Grande, havia transferido a capital do império romano para a pequena cidade de Bizâncio, rebatizando-a de “Constantinopla”. Inúmeras basílicas foram construídas em todas as partes do Império por Constantino e por seus sucessores imediatos, dando um enorme impulso à arte cristã. Foi sentida a necessidade de se criar imagens de Cristo para ornamentar as igrejas. Entretanto, quase todas as imagens desse período foram destruídas no período da luta iconoclasta.
No século VI, com Justiniano, forma-se uma tradição artística especificamente bizantina, com fundamentos na antiguidade clássica. Seus princípios são helenísticos, adaptados aos conceitos cristãos. Uma consciência religiosa cristã substitui o ideal de beleza plástica da antiguidade – agora é um ideal de beleza espiritual, com luminosidade interior. O principal objetivo da arte passa a ser a expressão do significado íntimo, exteriormente invisível das coisas.
Os ícones do monastério de Santa Catarina do Sinai, de elevado nível técnico, são um bom exemplo desse momento. No ícone do Cristo Pantocrator do Sinai, feito em encáustica sobre madeira, podemos observar que o semblante é um retrato concreto, mas na fisionomia prevalece um senso de contemplação e paz. O olhar é pensativo e vívido, a pose é natural. No fundo, nota-se uma construção de arquitetura helênica.
No ícone da Mãe de Deus com os anjos, entre São Teodoro e São Jorge, podemos notar que a arquitetura e os anjos são clássicos, como figuras vivas. A Virgem é austera, com traços marcantes, vestes escuras, como que para realçar a distância das preocupações mundanas. As imagens dos dois santos, São Jorge e São Teodoro seguem a iconografia bizantina, com traços orientais, distantes da cultura clássica.
O Cristo
Pantocrator do Sinai
Mãe de Deus no trono
No início do século VI o papa João VII, que era de origem grega, introduz em Roma a tradição bizantina. Surgem então ícones de dimensões monumentais, como a Virgem com o menino, em encáustica, da Igreja de Santa Maria Nova em Roma. No ícone de Santa Maria Nova, em encáustica, só foram conservados parte do vulto de N. Sra. e do menino. É de uma beleza original e penetrante, embora não clássica, porque não obedece às dimensões clássicas, sendo irregular. Porém é luminoso, brilhante, pintado em encáustica de uma cor muito suave. O tema principal é a matéria animada pelo Espírito Santo, transfigurada, transformada em luz.
Virgem de Sta. Maria Nova, Roma
O império Romano do Ocidente sofreu várias invasões, principalmente de povos bárbaros, até que em 476 d.C. foi completamente dominado. Já o Império Romano do Oriente, onde se desenvolveu a arte bizantina, apesar das dificuldades financeiras, dos ataques bárbaros e das pestes, conseguiu se manter até 1453, quando a sua capital Constantinopla foi totalmente dominada pelos muçulmanos.
2. A Época da Iconoclastia – Séculos VIII e IX
Após o florescer da arte bizantina nos séculos VI e VII veio uma profunda crise, resultado direto da iconoclastia. A idéia da impossibilidade de representar Deus em forma humana adquiriu força no século VIII, quando as tendências iconoclastas iniciaram uma luta sangrenta que durou cerca de 100 anos, de 730 a 843, com uma trégua entre 787 e 813.
A longa luta estava centrada na questão da possibilidade ou não de se representar a imagem do Cristo. Os opositores sustentavam que representar o Cristo significava apresentar somente sua natureza humana, uma vez que a natureza divina é indescritível. Os defensores argumentavam que proibir a imagem de Cristo significava por em perigo o próprio mistério da encarnação e assim subverter todo o dogma cristão. E uma vez que Cristo havia se encarnado, agora era possível representá-lo.
Neste período poucas obras foram realizadas, e uma quantidade incalculável de ícones foi destruída. Em alguns monastérios remotos, nos quais os iconógrafos encontravam refúgio, principalmente entre os coptas e no extremo oriente do império, algumas obras forma executadas. Surge uma arte mais primitiva, com cores fortes e linhas simples, como no ícone da Ascensão, do século IX, encontrado no monastério de Santa Catarina do Sinai.
Ascensão
Uma das principais causas da luta iconoclasta foi uma briga política trazida ao império bizantino pelos militares islâmicos, e a influência que eles exerciam. Para os islâmicos, as cruzes e as representações nos ícones eram proibidas por serem contrárias à sua religião. Diante da pressão, no ano 726 o imperador Leão III promulgou uma lei que considerava as imagens como sendo objetos de idolatria e, portanto, deveriam ser destruídas. Além disso, ficava proibida a produção de novas imagens.
Apesar da oposição dos bispos, monges, do povo e dos próprios pontífices romanos, a luta prosseguiu sob o sucessor de Leão III, seu filho, o imperador Constantino I. Este reuniu o Concílio de Hieria, em 754, que referendou a decisão do pai, condenando “as odiosas e abomináveis imagens”, especialmente a de Cristo, por serem contrárias às Sagradas Escrituras e à Tradição. Na mesma ocasião foram anatemizados os defensores das santas imagens, como São Germano de Constantinopla e São João Damasceno.
Como resposta, os defensores das imagens ou iconódulos, elaboraram uma verdadeira teologia dos ícones, que triunfou no II Concílio de Nicéia, em 787. Esse Concílio foi possível porque estava no trono Irene, mãe e regente de Constantino VI, então com apenas 10 anos de idade. Nessa ocasião foi reafirmada a legitimidade de fazer as imagens e de seu culto. Foram também reabilitados os defensores das imagens que haviam sido condenados.
Entretanto, a vitória de Irene não foi longa. Em 815, com um sínodo convocado em Santa Sofia de Constantinopla, Leão V desautorizou o II Concílio de Nicéia e reconheceu as atas de Hieria, de 754. As proibições e restrições continuaram implacáveis até o tempo de Teófilo, um imperador apaixonado pela teologia. Quando de sua morte, em 842, a imperatriz Teodora, feita regente de seu filho Miguel III, reuniu um sínodo em 843, e com um decreto restabeleceu definitivamente o culto dos ícones.
Essa data é até hoje comemorada na igreja ortodoxa como o “Domingo da Ortodoxia”, sendo comemorada sempre no primeiro domingo da Quaresma. Nesse dia se faz uma procissão com os ícones à volta da igreja e se repete a decisão do 7º Sínodo Ecumênico, de 843, dizendo:
Como os Profetas predisseram, como os apóstolos ensinaram, como foi transmitido para a Igreja, como os doutores eclesiásticos dogmatizaram, como a Ecumeni convergiu a verdade Cristã, como a graça resplandeceu, como o engano afastou-se, como Cristo recompensou.
É assim que nós acreditamos, Assim que nós falamos, assim que nós pregamos sobre Cristo, o nosso Deus verdadeiro é assim. Honramos os seus Santos com palavras, com obras escrita, com símbolos, com sacrifícios, nas igrejas e nos ícones.
Como déspota e nosso Deus adoramos Cristo e Nele prostramo-nos e como seus fiéis servidores honramos os seus Santos e lhes dedicamos a adoração merecida.
Essa é a fé dos Apóstolos, essa é a fé dos Ortodoxos e essa é a fé que sustentou a Ecumeni. Para todos os devotos pregadores, que lutaram em prol da honra e da glória da verdade cristã ortodoxa junto com os encômios, abraços fraternos e sentimentos afetuosos, dedicamos as nossas preces para que seja eterna a memória de todos os verdadeiros reis, Santos, Patriarcas, Doutores Eclesiásticos, Mártires e Confessores, que combateram em primeira linha em favor da verdade cristã ortodoxa.
Que suas memórias sejam eternas!
O longo período entre 843, com o triunfo da ortodoxia, até a queda de Constantinopla, em 1453, é marcado por importantes acontecimentos. Do ponto de vista histórico, temos a conquista e saque de Constantinopla por parte dos latinos, em 1204 e a queda final de Constantinopla nas mãos dos turcos em 1453, que acaba com o projeto político de Bizâncio.
Do ponto de vista religioso, esse é o período em que o cânone iconográfico foi definitivamente consolidado e no qual os povos eslavos foram convertidos ao Cristianismo. Nas artes isso se manifestou como um segundo período de ouro, sob a dinastia macedônica (867-1056), que prolongou-se sob a dinastia dos Comnenos (1081-1185), e encontrou seu pleno desenvolvimento sob a dinastia dos Paleólogos (1261-1453).
3. O Período Macedônio (867 a 1056)
A vitória sobre a Iconoclastia é um ponto decisivo na história da arte bizantina. Toda a sua existência, até a metade do século XV, baseia-se em princípios formulados na época pós-iconoclasta.
Na primeira metade do século X aparecem ícones de grande beleza e expressividade, com um forte retorno à tradição clássica, principalmente na corte imperial. Esse período é conhecido como o “Renascimento Macedônico”.
Há um monumentalismo visível nas igrejas, com ícones do tamanho de homens nas paredes, pilastras, presbitério, etc. Nas iconostases, divisória que separa o presbitério da nave da igreja, surge a deésis, as festas, as imagens de Cristo, da Virgem e do patrono da igreja.
Na segunda metade do século X, ao invés da cópia do antigo como critério principal na criação artística, passa-se à busca de uma expressão mais espiritual nos ícones, que se acentuará ainda mais no início do século XI. Um bom exemplo é uma miniatura do apóstolo Felipe, da primeira metade do século XI, do Monastério de Sta. Catarina do Sinai.
São Felipe
Ele é representado como o Cristo, abençoando. A fisionomia é mais espiritual, com o rosto alongado, olhos grandes. Seu corpo, alongado, parece flutuar no fundo dourado, como se estivesse observando de uma outra dimensão. As luzes das vestes são como marcadas, realçam a figura.
Nessa primeira metade do século XI temos um grande asceta e místico, São Simeão, o novo teólogo, que reúne em torno de si muitos seguidores e discípulos. A arte bizantina testemunha este processo de busca espiritual através de obras monumentais, especialmente em afrescos e mosaicos, caracterizados por certo ascetismo.
A dinastia imperial macedônica acaba na metade do século XI, quando inicia o período comneno.
4. O Período Comneno (1059 – 1204)
Na 2ª metade do século XI a arte bizantina afasta o monumentalismo mais rígido e asceta que havia caracterizado a fase anterior. A época comnena – nome da principal dinastia regente – é caracterizada por um novo tipo de imagem, mais refinada e clássica. Nesse período foram formulados todos os princípios do “bizantinismo”, no qual se afirmam a riqueza espiritual e a multiplicidade artística bizantina, que se difundem em todos os paises da área oriental e por fim nos estados ocidentais, honrados de poder convidar mestres gregos para trabalhar.
Difunde-se a técnica do ícone em mosaico, que nos séculos seguintes se tornará cada vez mais refinada e minuciosa, num delicado trabalho que tem muitos elementos comuns com obras de miniatura da época. O século XI é um período complexo, rico de correntes diversas, e que se conclui com uma tragédia: o saque de Constantinopla pelos cruzados, em 1204.
Na 1ª metade do século XII é mais evidente a herança da tradição do grande estilo monumental do século XI, que continuará existindo por todo o século, mas em menor quantidade. Um exemplo é a Mãe de Deus Odighitria do Monastério de Chiliandari em Monte Athos, em mosaico. É uma obra solene e grandiosa, de traços marcados, linhas definidas, no mesmo estilo de mosaicos da capela Zen de São Marcos, Veneza.
O mesmo estilo é encontrado em Chipre, na Macedônia e em afrescos de Santa Sofia de Novgorod (Rússia setentrional) o que indica a difusão da arte do século XI em todas as regiões do império.
A tradição clássica foi uma das principais correntes da arte bizantina no século XII. Um bom exemplo é o Cristo Pantocrator em mosaico, no qual todas as regras da harmonia e das proporções clássicas estão presentes, o que leva à expressão da paz interior, de um equilíbrio entre o humano e o divino do Cristo.
Mãe de Deus (Chiliandari)
Cristo Pantocrator
Nesse período os ícones já são feitos principalmente em têmpera a ovo. O exemplo mais famoso é sem dúvida a Mãe de Deus conhecida como Virgem de Vladimir. Por várias vezes restaurado, o ícone conserva apenas o rosto de Nossa Sra. e do menino originais. O rosto oval, os grandes olhos, a aristocracia e fineza da fisionomia são típicos do gosto comneno da época.
Outro exemplo desta época é a Virgem de Kikko, que representa no centro Nossa Sra. no trono com o menino, cercada de santos e profetas. Logo acima o Cristo no trono circundado por serafins, querubins e o símbolo dos evangelistas. É o exemplo do processo da época: um aprofundamento litúrgico e teológico de temas artísticos. A exaltação à Virgem se transforma num hino à Igreja, nascida da encarnação do Cristo e triunfante no Cristo glorioso e seus santos. Esse tipo de representação prossegue na arte bizantina até o final do século XII.
Virgem de Kikko
Virgem de Vladimir
Nessa época surgiram também ícones de temas monásticos, como a “Escada Celeste”, baseado no tratado de São João Clímaco, sobre as dificuldades do caminho ascético. Observa-se que os diabos são representados mais de uma maneira cômica e grotesca do que aterradora, como é costume na arte ocidental. Isso porque na arte iconográfica oriental procura-se sempre acentuar o lado vitorioso.
Também nesse período passam a ter importância os ícones com as doze festas. No final do século XII e início do século XIII, perto do ano 1204, há um retorno a ícones mais solenes, mais calmos, mais monumentais. Um exemplo é a Virgem Odighitria do Monte Sinai. Seu fundo é ricamente trabalhado, mas as formas são simples, com uma linguagem pictórica reduzida aos traços mais essenciais.
Isso prefigura o retorno aos modelos da primeira metade do século XI que irá ocorrer no século XIII. Uma característica da arte bizantina é este contínuo ressurgimento de tradições do passado, que não morrem, mas passam para um segundo plano, e depois reaparecem assumindo nuances e colorações diferentes, gerando uma síntese sempre nova e criativamente original.
A Escada Celeste
Odighitria do Monte Sinai
5. O Século XIII
Em 1204 Constantinopla é conquistada, saqueada e queimada pelos cruzados. Seu território passa a ser parte do Império Latino. A corte transfere-se para Nicéia, uma das poucas regiões que permanece livre, e que então se transforma em referência e centro das forças espirituais e políticas. Com a idéia dominante de restaurar o império – o que acaba ocorrendo em 1261 – reafirma-se o conceito do renascimento da antiga cultura helênica. O interesse pelo passado nessa situação política adquire uma coloração patriótica, de forte retorno ao classicismo, perceptível em toda a cultura do século XIII.
Outra característica importante deste período é a maior importância dos centros locais e da cultura nacional, conseqüência da mudança da capital para uma região que antes era apenas uma província esquecida. E emigração de mestres gregos fugindo da capital devastada para outros países produz um florescimento de escolas nacionais bizantinas, em particular na Sérvia.
Nessa época também há o desenvolvimento de ícones de santos com cenas de suas vidas. Um dos primeiros exemplos é o ícone de São Nicolau. O desenho é mais esquemático, e as cenas à volta têm um caráter mais popular, narrativo, com riqueza de detalhes que falam da vida cotidiana, ao passo que a figura central é mais tradicional, com uma maior atenção à expressividade interior. As cenas à volta também têm um valor histórico, pois traduzem pictoricamente os documentos e fontes agiográficas relacionadas ao personagem representado.
São Nicolau com
cenas de sua vida
Em torno da metade do século XIII aparece uma tendência puramente clássica, cuja expressão icônica mais madura é o Cristo Pantocrator do Monastério Sérvio de Hilandar, em Monte Athos, de 1260, que exprime admiravelmente o gosto monumental de sua época. O século XIII também é a época de ouro dos afrescos, com os grandes complexos dos Bálcãs, onde domina a tipologia clássica.
Cristo Pantocrator de Hilandar
6. Os Ateliês dos Cruzados
Um grupo estilístico particular é constituído pelos ícones do século XIII executados nos ateliês iconográficos que trabalhavam sob encomenda dos cruzados, cavaleiros e prelados latinos enamorados da arte oriental, desejosos de imitá-la e querendo obras nesse estilo.
Para satisfazer essa demanda, logo após a ocupação latina, nascem ateliês especializados nesse gênero. Os melhores exemplos vêm da primeira metade do século XIII, como os ícones da Crucificação e o da Mãe de Deus, ambos conservados no Monastério de Santa Catarina do Sinai.
É uma arte muito mais expressiva, mais emocional, sem a sutileza psicológica e o refinamento estilístico dos mestres bizantinos. Fica a impressão de um desejo ingênuo de seguir as regras bizantinas, mas sem uma compreensão profunda das concepções que as fundamentam. O resultado é uma arte simples, elementar, que tem um fascínio e uma expressividade particular, com menor tendência à contemplação, à interiorização.
O fundo vermelho é característico desse estilo. A cor vermelha é um dos símbolos mais antigos e complexos da iconografia do oriente. É encontrada desde os tempos mais antigos, retornando com mais intensidade em algumas áreas geográficas e culturais. É o símbolo da energia divina por excelência, do “fogo flamejante” que anima a criação e lhe dá vida. Entretanto, é também a cor do martírio, uma alusão ao sangue derramado de Cristo para salvar a humanidade.
Por todos esses motivos, torna-se também o símbolo do amor divino, “a chama do ardor do amor” que aquece os corações dos justos e dos pecadores, e lhes traz o arrependimento para que “seus corações transmutem o temor em amor”, como disse São Gregório Magno. Por estes simbolismos o vermelho, na iconografia oriental, é muitas vezes usado no lugar do ouro, como uma alternativa para a pintura dos fundos ou dos nimbos. Lembremos que o ouro é o símbolo da luz imaterial, da presença do divino. Os fundos são muitas vezes chamados de “luz”, pois servem para colocar o personagem ou o evento na perspectiva da visão divina.
Mãe de Deus
Descida aos Infernos
7. O Renascimento Paleólogo – 1ª Metade do Século XIV
Profundidade espiritual e beleza são marcantes na arte bizantina tardia, última etapa na vida de uma cultura milenar que na vigília de seu fim concebe um extraordinário florescer. A multiplicidade de fenômenos da arte do século XIV, a riqueza da vida artística, as novas figurações, originais no que diz respeito à tradição precedente e de um elevado domínio técnico coexistem com a catástrofe estatal, política e econômica de Bizâncio, que havia perdido grande parte de seus territórios, riqueza e prestígio internacional. O antigo e poderoso império estava reduzido a um minúsculo estado constantemente atacado pelos turcos.
A devoção aos ideais da antiguidade encontra uma realização em uma nova forma de classicismo bizantino, conhecida como renascimento Paleólogo. Os ícones do 1º terço do século XIV são caracterizados por maneiras pictóricas refinadas, classicamente estilizadas do Renascimento paleólogo. Bom exemplo são dois ícones em mosaico, mas de pequenas dimensões, portáteis, com as doze festas, conservados no Museu dell´Opera del Duomo, em Florença.
As Doze Festas
O ícone do Cristo “Salvador das Almas” e o da Virgem “Salvadora das Almas” são do início do século. Possuem um revestimento de prata, com decorações, bustos de santos e inscrições em grego. No ícone da Virgem, o Cristo aparece no bordo superior, bendizendo, e dois anjos estão em medalhões um pouco acima. Nas laterais estão os profetas que prenunciaram a Encarnação do Cristo, São João “irmão do Senhor” que é testemunha da salvação, e São João Crisóstomo, autor da liturgia através da qual Cristo se renova sacramentalmente.
Deste modo o revestimento metálico, além de cumprir uma função devocional, cumpre um plano teológico de interpretação e aprofundamento dos Mistérios. Tradicionalmente, o ícone da Mãe de Deus é a expressão do evento central de toda a fé cristã: a encarnação. Para reforçar esse ponto, no verso deste ícone está pintada a Anunciação. O revestimento do ícone do Cristo repete a tipologia encontrada no ícone da Virgem, apresentando as figuras de apóstolos e evangelistas: Pedro, André, Paulo, João o Teólogo, Mateus e Marcos. No verso, encontra-se pintado o ícone da Crucificação.
Mãe de Deus
Salvadora das Almas
Cristo Salvador das Almas
Anunciação
Crucificação
São João Batista
8. O Palamismo – 2ª Metade do Século XIV
O renascimento Paleólogo se exauriu em torno de 1330. A guerra civil e a luta pelo poder vieram a substituir a existência relativamente estável do reino de Andrônico II, o Paleólogo. A disputa eclesiástica iniciada nos anos 30 entre Barlaam, monge grego proveniente da Itália, defensor de uma fé ortodoxa mais humanizada, e Gregório Palamas, monge do Monte Athos, que sustentava a defesa da mística tradicional ortodoxa da contemplação de Deus (esychia), o esicasmo, trouxe muitas dúvidas aos homens da igreja, aos intelectuais e ao povo.
A doutrina que a Igreja até então havia colocado como o único caminho era colocada em dúvida. Essa inquietude refletiu-se no campo das artes, trazendo aos ícones certa exaltação emotiva, um senso trágico da existência. Não há mais a serenidade, a neutralidade do classicismo. Um exemplo é o ícone de São João Batista, que transmite inquietude.
Em torno de 1350 a situação política e eclesiástica em Bizâncio mudou. Em 1347 Giovanni Cantacuzeno vence a guerra civil e sobe ao trono. E no Concílio de 1351 Gregório Palamas e sua doutrina do esicasmo vencem a disputa eclesiástica.
Começa o período denominado “tardopaleólogo”, que se inicia com a vitória do “palamismo”, que concentra-se nos problemas da fé, da comunhão com Deus e da vida interior do homem. O ideal ortodoxo se avizinha de uma forma de vida monástica, que embora sempre tenha existido em Bizâncio, torna-se particularmente evidente na segunda metade do século XIV.
Os ícones – que na época dos paleólogos eram menores - tornam-se monumentais, destinados principalmente às igrejas, com grandes figuras facilmente “legíveis”. O ícone, como imagem mais significativa de culto, destinada á catequese, é chamado para representar a doutrina do conhecimento de Deus, da energia divina, com a qual cada homem que tem experiências na vida espiritual pode entrar em comunhão.
Com o fortalecimento do palamismo não apenas na vida monástica, mas em toda a Igreja, a arte bizantina testemunha um verdadeiro florescimento. É um novo tipo de Renascimento, agora não mais baseado na imitação dos modelos antigos, mas no recolhimento espiritual.
Cristo Pantocrator (1363)
Mãe de Deus Pimenovskaya
Arcanjo Miguel
Talvez a obra prima desse período seja o Cristo Pantocrator de 1363, datado graças a dois pequenos retratos dos doadores, colocados no ângulo inferior. A representação do busto de Cristo é imponente, monumental, e chama a atenção por sua beleza e solenidade. Todo o semblante é luminoso, a superfície cromática parece irradiar luz. Não há traços emotivos. A figura do Cristo transmite paz, concentração, silêncio. É a matéria transfigurada, iluminada pela energia divina.
Outros exemplos deste período são o Arcanjo Miguel, que está no Museu Bizantino de Atenas e a Mãe de Deus Pimenovskaya, da Galeria Tretjakov, em Moscou. Esse último é pintado baseado em princípios clássicos, mas muito doce e rico de sentimentos.
Detalhe da Virgem da deésis
Talvez a obra prima desse período seja o Cristo Pantocrator de 1363, datado graças a dois pequenos retratos dos doadores, colocados no ângulo inferior. A representação do busto de Cristo é imponente, monumental, e chama a atenção por sua beleza e solenidade. Todo o semblante é luminoso, a superfície cromática parece irradiar luz. Não há traços emotivos. A figura do Cristo transmite paz, concentração, silêncio. É a matéria transfigurada, iluminada pela energia divina.
Outros exemplos deste período são o Arcanjo Miguel, que está no Museu Bizantino de Atenas e a Mãe de Deus Pimenovskaya, da Galeria Tretjakov, em Moscou. Esse último é pintado baseado em princípios clássicos, mas muito doce e rico de sentimentos.
Deésis da Catedral da Anunciação
9. 1ª Metade do Século XV
A primeira metade do século XV é a etapa conclusiva da vida da arte bizantina. Em 1453 o império Bizantino é conquistado pelos turcos e deixa de existir. Esse período é marcado por uma atividade criativa intensa. Um exemplo é o ícone de Santa Anastácia, que está no Hermitage.
De uma beleza clássica, imponente, majestosa e harmônica, a figura é quieta e bela, mas com um frescor de juventude. As tintas são luminosas e refinadas, seja no rosto, com esfumados delicados de ocra e rosa ou nas vestes, onde raios de luz brancos transparentes e semitransparentes se entremeiam por toda a superfície, acentuando a doçura do verde. Estes raios de luz não são apenas uma técnica, mas um eco, um reflexo da nova atmosfera da arte do século XV, onde se começavam a criar ícones com uma tendência a tamanhos menores e doçura, refinamento, em contraste às obras monumentais do final do século XIV.
Referências
Donadeo, Irmã Maria. Os Ícones, Imagens do Invisível. Ed. Paulinas, SP, 1996
Ícones da Mãe de Deus. Ed. Paulinas, SP, 1997
Ícones de Cristo e dos Santos. Ed. Paulinas, SP, 1997
Duarte, Adélio Damasceno. Ícones FUMARC, Belo Horizonte, 2003.
Gharib, Georges. Os Ícones de Cristo. Ed. Paulus, São Paulo, 1997.
Popova, Olga, et al. Ícone. Mondadori, Milano, 2003.
Prostov, Vladimir e Tatiana. The Icon as an Image. www.iconofile.com
Santa Anastácia